CBIOS: um embate entre sustentabilidade e princípios constitucionais

O mercado de carbono tem ganhado cada vez mais relevância no Brasil, especialmente diante dos compromissos internacionais assumidos no âmbito do Acordo de Paris. Durante a COP29, o país se comprometeu a reduzir suas emissões líquidas de gases de efeito estufa (GEE) entre 59% e 67% até 2035, neutralizando-as até 2050.

O mercado de carbono tem ganhado cada vez mais relevância no Brasil, especialmente diante dos compromissos internacionais assumidos no âmbito do Acordo de Paris. Durante a COP29, o país se comprometeu a reduzir suas emissões líquidas de gases de efeito estufa (GEE) entre 59% e 67% até 2035, neutralizando-as até 2050.

Entre as políticas idealizadas para o cumprimento dessas promessas, destaca-se a Política Nacional de Biocombustíveis (Programa RenovaBio), instituída pela Lei nº 13.576/2017: um mercado regulado de créditos de carbono que, ao mesmo tempo, onera as emissões de GEE por combustíveis fósseis e incentiva o uso dos biocombustíveis.

O RenovaBio opera por meio de metas anuais de descarbonização,atribuídas pela ANP aos distribuidores de combustíveis fósseis, os quais, para cumpri-las, devem adquirir Créditos de Descarbonização (CBIOs) na bolsa de valores brasileira (B3). Em 2024, dos 163 distribuidores com metas definidas, 97 as cumpriram totalmente, 5 atingiram pelo menos 85% e 61 não atingiram o mínimo exigido, além daqueles que obtiveram liminares postergando-as [1].

Esses fatores, combinados, contribuem para o aumento do preço dos créditos, diante do desequilíbrio entre oferta e demanda. Para 2025, por exemplo, enquanto a meta é de 58,9 milhões de créditos, a oferta fica em apenas 53,16 milhões.

O Relatório de Fiscalizações em Políticas e Programas de Governo, apresentado em 2024 pela Unidade de AudPetróleo, constatou a (1) insuficiência na oferta de CBIOs pelos produtores e importadores de biocombustíveis e o (2) descompasso desta com as metas de descarbonização.

Embora ainda careça de uma definição segura no direito positivo, o CBIO tem sido interpretado como uma espécie do gênero crédito de carbono, mais especificamente como um “ativo financeiro, ambiental, transferível”, nos termos da Resolução CVM 175/2022 e do entendimento jurisprudencial em formação [2].

Emitidos por produtores e importadores de biocombustíveis certificados, os CBIOs correspondem a uma tonelada de CO₂ evitado e funcionam como uma fonte extra de renda a estes emissores primários, os quais possuem liberdade para decidir quando e quanto vender, o que favorece a especulação e as distorções nos preços.

Além disso, a Lei nº 13.576/2017 não estabelece preferência na aquisição dos CBIOs pelos distribuidores (partes obrigadas), permitindo que players não obrigados também os comprem em igualdade de condições, mesmo sem necessidade de compensar emissões. Somente no mês de maio de 2025, observou-se volume expressivo de negociações de CBIOs por partes não obrigadas – no dia 09/05, por exemplo, enquanto os obrigados legais negociavam o total de 149.497, os agentes não obrigados negociavam 209.644 de créditos [3].

Essa ausência de critérios legais objetivos quanto ao papel, prioridade e limites de atuação dos agentes e da própria dinâmica do mercado de CBIOs, gera impactos negativos, sobretudo aos distribuidores e aos consumidores, que colidem frontalmente com os compromissos assumidos no Acordo de Paris e levantam dúvidas sobre a conformidade do RenovaBio com os princípios constitucionais.

Tais fragilidades normativas e operacionais não são meramente teóricas: algumas já foram reconhecidas judicialmente [4], enquanto outras ainda aguardam julgamento no Supremo Tribunal Federal (ADI 7.596 e ADI 7.617).

Fato é que o programa enfrenta o desafio de não se tornar uma política pública assimétrica e ineficaz diante das inconsistências nele encontradas, as quais mostram-se incompatíveis com os seus próprios fundamentos, como a proteção do consumidor quanto a preço e oferta (artigo 3º, II), controle inflacionário (artigo 6º, VII) e diversos outros princípios que regem a ordem constitucional: livre concorrência (artigo 170, inciso IV), eficiência (artigo 37), moralidade (aartigo 37), publicidade (artigo 37), legalidade (artigo 37), finalidade (artigo 37), meio ambiente ecologicamente equilibrado (artigo 225), função social da propriedade (artigo 5º, inciso XXIII), proibição de proteção deficiente (artigo 5º, § 1º), livre iniciativa (artigo 1º, inciso IV, e artigo 170), isonomia (artigo 5º, caput), poluidor pagador (artigo 225, § 3º), ordem econômica (artigo 170), defesa do consumidor (artigo 5º, inciso XXXII, e artigo 170, inciso V).

O modelo vigente permite que os fins sejam justificados pelos meios, com a lógica financeira se sobrepondo à finalidade ambiental. Se o objetivo é incentivar a produção e uso de biocombustíveis e reduzir as emissões de GEE oriundas dos combustíveis fósseis, permanece obscura a função das partes não obrigadas na aquisição dos CBIOs, em igualdade de condições com os obrigados legais — estes sujeitosa penalidades severas em caso de descumprimento das metas.

Tanto isso é verdade que o descumprimento das metas pode levar à revogação da autorização para atuação dos distribuidores (artigo 9º-C da Lei nº 13.576/2017), criando barreiras ao funcionamento regular de concorrentes e podendo dificultar o acesso a insumos essenciais.

Paradoxo

Como cediço, a regulação do setor petrolífero é marcada por forte regulação e controle estatal, com a ANP atuando em todas as etapas da cadeia – da exploração à comercialização – por meio de fiscalizações, monitoramento e imposição de padrões de qualidade. No âmbito do RenovaBio, a agência exerce papel central, sendo responsável pela certificação de biocombustíveis, definição das metas individualizadas e verificação de seu cumprimento.

Surge, assim, um paradoxo entre o rigor regulatório aplicado aos combustíveis fósseis e as lacunas normativas do RenovaBio, que permitem a atuação especulativa de agentes não obrigados — por meio da concentração ou retenção estratégica de CBIOs —, abrindo margem à desvirtuação da finalidade do Programa.

Segundo o Tribunal de Contas da União, o RenovaBio apresenta falhas estruturais relevantes, como a (1) baixa eficácia dos controles de segunda ordem realizados pela ANP e a (2) ausência de critérios de materialidade e risco [5]. Em uma denúncia recente, foram apontadas deficiências na gestão, transparência e controle dos recursos e operações com CBIOs [6], com potenciais impactos sobre a efetividade do Programa e aumento de custos para distribuidores e consumidores.

Em resposta, contudo, o governo federal editou o Decreto nº 12.437/2025, ampliando os poderes de fiscalização da ANP sobre os distribuidores e prevendo penalidades mais severas, como multas de até R$ 500 milhões (artigo 6º, II e III) para aquelas que não atingirem suas metas.

A recente medida escancara o embate entre sustentabilidade e princípios constitucionais, que pode ser contido ou ampliado com a implementação do mercado de carbono no Brasil. Esse cenário reforça a necessidade de uma revisão regulatória do RenovaBio, com foco em: (1) garantir prioridade legal aos agentes obrigados na aquisição dos CBIOs; (2) ampliar a transparência sobre disponibilidade, lastro e movimentação dos créditos; e (3) instituir mecanismos de monitoramento e contenção de práticasespeculativas.

Com os ajustes necessários e alinhamento aos princípios constitucionais, o Programa tem potencial para consolidar uma transição energética que seja, ao mesmo tempo, juridicamente estruturada e ambientalmente efetiva, tornando-se um modelo internacional de descarbonização.

Com a nova Lei 15.042/2024 e o crescimento do mercado de carbono, o país enfrenta o desafio de consolidar um arcabouço regulatório sólido e construir um futuro cada vez mais sustentável dentro dos ditames constitucionais.

NOTAS:

[1] BROADCAST EXCLUSIVO. Mercado de créditos de carbono se populariza, mas ainda faltam catalisadores. InvesTalk, 10 mar. 2025. Disponível em: https://investalk.bb.com.br/noticias/sustentabilidade/mercado-de-creditos-de-carbono-se-populariza-mas-ainda-faltam-catalisadores.

[2] TRF 3ª Região, 3ª Turma, Apelação Cível n. 5028277-80.2022.4.03.6100, Rel. Des. Fed. Rubens Calixto, j. 18.10.2024.

[3] B3. CBIO – Consultas. B3, [s.d.]. Disponível em: https://www.b3.com.br/pt_br/b3/sustentabilidade/produtos-e-servicos-esg/credito-de-descarbonizacao-cbio/cbio-consultas/.

[4] Agravo de Instrumento 1035728-17.2023.4.01.0000; Mandado de Segurança 1004858-55.2024.4.01.3200; Procedimento Comum Cível 1092906-06.2023.4.01.3400; Agravo de Instrumento 1040323-59.2023.4.01.0000.

[5] TCU. Relatório de Auditoria (TC 015.561/2021-6). Tribunal de Contas da União, 15 fev. 2023. Disponível em: https://pesquisa.apps.tcu.gov.br/documento/acordao-completo/renovabio%2520auditoria/%2520/score%2520desc/2.

[6] TCU. Denúncia (TC 029.070/2024-4). Tribunal de Contas da União, 30 abr. 2025. Disponível em: https://pesquisa.apps.tcu.gov.br/documento/acordao-completo/renovabio%2520auditoria/%2520/score%2520desc/0.

  • Rafael Oliveira Beber Perotoé mestre e Doutorando em Direito Constitucional e Processo Tributário pela PUC-SP. Especialista em Gestão Empresarial e Gerenciamento de Projetos pela FGV. Sócio da Oliveira e Olivi Advogados Associados.
  • Raphaela Conteé pós-graduada em Direito Tributário pela USP-FDRP, e advogada na Oliveira e Olivi Advogados Associados.

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