Audiência destaca barreiras competitivas e necessidade de regras que garantam equilíbrio e segurança ao abastecimento
A audiência pública promovida neste mês de novembro pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) para discutir a concorrência no mercado de combustíveis assumiu um papel estratégico ao reunir representantes do setor privado, do governo federal, de associações empresariais, do Ministério Público e de órgãos de fiscalização. O encontro revelou convergências importantes sobre como o mercado brasileiro de combustíveis líquidos precisa evoluir para garantir mais eficiência, segurança e equilíbrio competitivo.
Um dos consensos mais fortes diz respeito ao reconhecimento das assimetrias existentes no setor. Enquanto três grandes grupos nacionais concentram mais da metade do abastecimento, mais de 150 distribuidoras regionais operam em municípios médios e pequenos, garantindo capilaridade e acesso a regiões onde os grandes players não chegam. Segundo a própria audiência, essas empresas enfrentam barreiras logísticas e regulatórias que enfraquecem sua competitividade – distorção que se traduz em risco ao abastecimento nacional.
A fala de Cláudio de Souza de Araújo, diretor jurídico da Federação Nacional das Distribuidoras de Combustíveis, Gás Natural e Biocombustíveis (Brasilcom), destacou exatamente esse ponto ao afirmar que “normas estaduais acabam criando fragmentação regulatória, custos adicionais e barreiras artificiais que comprometem a eficiência e a concorrência”. Sua observação reforça a necessidade de harmonização regulatória e de respeito ao princípio da proporcionalidade, preservando a concorrência leal e evitando instrumentos normativos que, na prática, criam desigualdade competitiva.
A transição energética permeou toda a discussão. A estrutura atual do Programa RenovaBio, ao elevar metas obrigatórias para aquisição dos títulos de descarbonização (CBIOs) sem previsibilidade e ao limitar o acesso de distribuidoras regionais a produtores de biocombustíveis, cria distorções que afetam abastecimento, preços e planejamento operacional. O setor entende a importância dos biocombustíveis para a descarbonização, mas defende mecanismos que não comprometam a isonomia e nem desorganizem a cadeia de distribuição.
O diretor executivo da Associação Nacional das Empresas Distribuidoras de Combustíveis (ANDC), Francisco Neves, recomendou que o Cade adote uma postura orientadora e preventiva diante de condutas que afetem a concorrência, e destacou a importância de o Congresso Nacional observar com cuidado projetos de lei que possam gerar insegurança regulatória. Para ele, o diálogo constante entre o setor privado e as autoridades é essencial para corrigir assimetrias, fortalecer a regularidade fiscal, garantir o abastecimento e preservar a competitividade de empresas regionais que desempenham papel estratégico na infraestrutura energética do país.
Neves ressaltou a importância de compreender as diferenças estruturais entre os diversos perfis de distribuidoras que operam no mercado brasileiro. Segundo ele, o setor convive com três grandes grupos econômicos de atuação nacional, que juntos detêm mais de 50% do mercado, com amplo acesso a infraestrutura, logística de grande escala e contratos estáveis. Ao mesmo tempo, mais de 150 distribuidoras regionais enfrentam obstáculos significativos, como dificuldade de acesso às bases primárias, custos logísticos elevados, restrições de crédito, obrigações regulatórias abusivas e atuação em municípios do interior de pequeno e médio porte.
O diretor da ANDC destacou que 42% dos municípios brasileiros são abastecidos exclusivamente por distribuidoras regionais, o que evidencia a relevância dessas empresas para a segurança energética nacional. Ele argumentou que políticas públicas, regulações e a aplicação das regras do setor precisam levar em conta essas diferenças, evitando assimetrias que prejudiquem a competição. “Isonomia não significa tratar todos de forma igual, mas reconhecer particularidades e ajustar o arcabouço regulatório para que todos possam competir de forma justa”, pontuou.
Durante sua exposição, Neves enalteceu a missão da ANDC de incentivar uma transição energética racional sob os pontos de vista econômico e ambiental; defender um modelo regulatório mais responsivo e menos punitivista, que não gere custos desnecessários à extensa cadeia do setor, especialmente o elo da distribuição sobre o qual recai as maiores obrigações; combater as irregularidades sempre com o viés de fortalecer o papel fiscalizador e regulador do Estado.
Outro eixo fundamental do debate veio das refinarias privadas. Ao analisar o impacto das regras de comercialização do petróleo e da política de preços, Evaristo Pinheiro, presidente da Associação Brasileira dos Refinadores Privados (Refina Brasil) lembrou que “assimetria competitiva ocorre quando refinadores privados precisam adquirir petróleo importado pagando frete, seguro e impostos, enquanto a Petrobras internaliza esses custos em sua estrutura”. O resultado, segundo ele, é um ambiente de competição artificialmente desequilibrado, que desestimula investimentos e mantém o país dependente de importações – cenário incompatível com a necessidade de expansão do refino e de uma política industrial de longo prazo
A Advocacia-Geral da União (AGU), por sua vez, reforçou a necessidade de coordenação institucional. Em sua intervenção, Priscilla Rolim de Almeida apontou que “é essencial aprimorar a cooperação entre os órgãos para evitar distorções concorrenciais e fortalecer a integridade do mercado”. Essa fala reforça um ponto central do debate: a concorrência no setor de combustíveis depende não apenas de regras econômicas, mas também da articulação entre fiscalização, tributação, regulação e políticas públicas.
A audiência demonstrou, portanto, que o país pretende avançar para um novo entendimento sobre o mercado de combustíveis: mais competitivo, moderno, integrado e atento à transição energética. Para que esse modelo avance, é preciso enfrentar distorções históricas, remover barreiras artificiais, corrigir assimetrias e garantir condições estruturais para que agentes de todos os portes – especialmente os regionais – possam atuar com segurança jurídica e viabilidade econômica.
Ao final, o consenso é claro: fortalecer a concorrência no mercado de combustíveis não significa tratar todos igualmente, mas garantir regras proporcionais, ambiente regulatório estável, reconhecimento da diversidade empresarial e estímulo ao investimento privado. A audiência do Cade foi um marco nesse processo, ao reunir múltiplas visões para construir um diagnóstico consistente e apontar caminhos para o futuro da energia no Brasil.
Publicado originalmente no portal JOTA


